Livro da Vovó

Olhando sempre para o lado positivo da vida, acompanhada da risada gostosa que é sua marca registrada, Maria Emília de Mendonça, a vovó Dodóca, alcançou mais um sonho na  longa trajetória. Aos 103 anos, ela lançou neste sábado (10), em Novo Hamburgo, o livro Encontro das Águas, que eterniza as suas memórias em 129 páginas. A obra conta como ela encara o mundo para chegar a incrível marca de mais de um século na Terra — ainda se sentindo jovem, garante ela. 

Para a vovó Dodóca, o segredo de tudo está na cabeça, e não no corpo. Ela sugere que todos olhem para a vida sempre buscando a sua melhor parte. Ou seja, para ela, o copo nunca está meio vazio, mas meio cheio. Assim, segundo a vovó, é possível atingir a longevidade de maneira feliz.

Perguntada sobre o momento mais alegre, complementou a primeira fala: 

— Alegria eu tenho sempre. Eu penso mais é nas amizades, no amor, nas pessoas que estiveram e estão comigo. 

A ideia de escrever o livro já existia em dona Maria Emília, mas foi incentivada pela filha, Marli Helena de Oliveira, 68 anos, que buscou a parceria do escritor e amigo Fabrício Vijales. Foram várias semanas de entrevistas da vovó ao profissional entre 2017 e 2018, em encontros todas as segundas-feiras para que ela detalhasse os principais pontos da vida centenária.

As histórias da vovó

O livro conta desde os primeiros anos dela, neta de um escravo, em uma família humilde. Nascida na área rural de Gravataí, ela perdeu a mãe aos sete anos, o que abreviou a infância e fez com que ela trabalhasse desde cedo. Teve de assumir os irmãos e se tornar uma mãe repentinamente. Ainda assim, ajudava o pai na roça com uma enxada sempre que ele precisava. Depois, aos 13 anos, foi morar em Porto Alegre, no bairro Bom Jesus, onde trabalhou como doméstica nas casas de famílias ricas da época. 

O texto reflexivo também atende a um dos principais hábitos da dona Maria Emília: ler. Há 10 anos, ela decidiu largar outros passatempos, como a TV, e dar mais atenção para a leitura, um hábito que nunca mais deixou e recomenda a todos. Nem mesmo a casa cheia com os nove netos, 12 bisnetos e cinco tataranetos é capaz de tirar a concentração dela nos textos.  

Ultimamente, a vovó teve agenda de estrela para divulgar o Encontro das Águas. Visitas em prefeituras, casas de amigos, conversa com autoridades e uma maratona de entrevistas marcaram os últimos dias da dona Maria Emília. Ela lembra o nome de cada um que a entrevistou e perguntou a vários as suas datas de nascimento, para que possa dar os parabéns na próxima vez em que os encontrar.

— Está muito legal. Foi uma boa ideia da Marli o livro. Tá bombando! — diverte-se, usando um termo jovem, a mulher que já tem quase 38 mil dias de vida.  

Além do livro, no ano passado, a vovó alcançou outro sonho em sua vida. Comemorou os 102 anos em sua primeira viagem internacional, com a filha, para Portugal. Maria Emília lembra de compartilhar o sonho com algumas pessoas, que duvidaram que ela conseguiria ir tão longe com a idade avançada. A viagem foi de mais de 20 dias e ela adorou.

A memória de Maria Emília impressiona a qualquer um. Ela não demora para responder as questões, não titubeia, lembra de datas com a precisão de quem não usa agendas. Uma das histórias que ela mais se diverte ao contar foi sobre a vez em que abandonou o noivo pouco antes do casamento, aos 24 anos. O pretendente era mais velho, amigo de seu pai, e já tinha até feito casa para eles e entregue uma aliança. Ela tinha certeza que não queria casar com aquele homem. 

— Teve uma noite que eu não dormi. Não sabia como diria para o meu pai. Mas criei coragem e falei pra ele ao amanhecer, quando pedi a bênção. Ele, graças a Deus, entendeu. Saí a pé para caminhar duas horas até o cartório e ainda encontrei o noivo no caminho. Ele tinha uma faca, e me ameaçou. Disse pra ele: quer me matar, pode me matar, mas contigo eu não caso — conta. 

O destino, como ela mesmo lembra, foi caprichoso e ela casou-se com o homem de sua vida: um amigo que ela já gostava de outros tempos. Foi com ele que ela teve os seus seis filhos. 

Vitalidade e saúde de ferro

Chama atenção também seu estado de saúde: não usa óculos nem para ler, caminha lentamente, mas com passadas firmes e sem bengalas, e só toma dois remédios, um para manter controlada a pressão arterial e outro para labirintite. Fazia hidroginástica até os 99 anos de idade e só parou de ir, assegura, porque ficou sem companhia. Até os 101, ela morava sozinha em sua casa em Novo Hamburgo. Há dois anos, mora com a filha, na mesma cidade.  

— Não tem quem não se impressione. Ela é uma pessoa iluminada, que alegra quem está por perto  — revela Marli.

A vó Dodóca também revela sua dieta: come de tudo, mas em porções pequenas. Gosta de cozinhar à moda antiga, usando banha no feijão, que deixa as comidas mais saborosas. O prato preferido é dobradinha: mondongo com batata. Nunca fumou, nunca bebeu e nunca usou drogas. 

Na rotina, gosta de ir em todas as festas em que é convidada e a encontros com familiares e amigos.  É adepta da filosofia Seicho-no-Ie há 30 anos. Ficar muito tempo parada não é algo que deixe feliz a centenária do Vale do Sinos. Tenta sempre viajar e os outros Estados do Brasil estão entre os seus destinos favoritos. Para o futuro, o único pedido que faz toda noite é que possa seguir conhecendo novos lugares. 

O nome do livro, Encontro das Águas, é uma simbologia feita pelo autor pela resiliência da dona Maria Emília com os problemas da vida. Uma pessoa que se molda ao passar dos anos, mas que segue sempre o seu próprio fluxo. Se ficar parada, apodrece. Por isso, precisa mover-se em seu caminho desviando de pedras e dos problemas, mas sem nunca parar de seguir. Olhando, claro, para o lado positivo e mantendo a risada contagiante.

Referência: GaúchaZH

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